Planta aguatica da família da vitória-regia. Nasce no pântano e seu caule projeta-se do lodo, mas ela nasce e se mantém limpa. Lembra-nos Jesus que disse: “Não é o que entra que macula o ser humano”. Assim deve ser também cada pessoa e, com mais força, cada cristão: flor de lótus no lamasal da vida.
A VIA- SACRA SOB A ÓTICA DA BELEZA
Por: Padre Gegê[1]
Como o próprio nome sugere, via-sacra significa
caminho sagrado; logo, uma via que não é vulgar ou comum; um itinerário de
outra ordem. Tudo que marca uma ocorrência sagrada aparece para o ser humano
como fato que rompe a banalidade ou a trivialidade do dia-a-dia. Nesse sentido,
as vias-sacras realizadas nas comunidades católicas Brasil a fora no tempo
quaresmal relembram, e atestam a luz da piedade popular, que na vida de um
certo Galileu, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, fatos de extraordinário
valor ocorreram e rememorá-los traz para o hoje da história um potencial
transformador. Desse modo, em cada via-sacra, a comunidade religiosa é remetida
a um passado vivo, destacando os passos de Jesus de Nazaré e seu trajeto de
inigualável beleza humano-divina mesmo em face das terríveis, escabrosas, e perversas maquinações humanas
que o levaram, espantosamente,à morte num madeiro.
Mas o que agora desejo brevemente refletir
coloca-nos não no caminho costumeiro de nossas catequeses que desde a
quarta-feira de cinzas nos preparam para a vivência quaresmal do sofrimento de
Cristo que sem beleza ou encanto, como destaca o profeta Isaías, foi levado à
crucifixão pela maldade e pecado humanos. O que procuro destacar, não nega o
horror e a barbaria das quatorze estações (desde a condenação até a
entronização de seu corpo no sepulcro) e, portanto, a fealdade do potencial
destrutivo humano, mas, antes, sublinha no interior da barbárie, o potencial de
fulgor e beleza que irradiam do coração do Deus condenado, bem como seus posicionamentos e respostas à escabrosa violência humana. Por
isso, a via-sacra pode também ser vista
e compreendida no que oferece de beleza admirável que nem a mais brutal
violência humana conseguiu extinguir. Noutras palavras, a via-sacra é, também,
por mais estranho que nos pareça, a via da beleza que só pode ser compreendida
desde dentro por olhos espirituais, por olhos que se demoram ante o
maravilhamento do visto sem se dar conta dos desesperados e chatos ponteiros
dos relógios; relógios que quase sempre nos apressam e nos empurram para a
marcha estressante em direção ao nada. E
o esplendor da beleza que nos paralisa e fascina é Jesus, o conjunto de sua
vida e, em especial, o brilho de seu coração que não cessa de luzir e amar
mesmo quando a “noite traiçoeira” chega. Nessa hora tenebrosa, o horror do
madeiro é confrontado com um tipo inaudito de Amor, um tipo louco de
oferecimento de si mesmo, uma maneira surpreendente de ser coerente e ético, de
não se vender ou trilhar o caminho mais fácil e lucrativo, como estamos
acostumados a ver e a fazer.
Daí segue que atentos aos passos de Jesus,
desde a primeira estação, nos colocamos diante de uma existência extraordinária
que é oferecida aos nossos olhos míopes em pobres molduras; e, sem
desconsiderar o extremo do fechamento humano ao amor divino, tudo, a partir de
Jesus vem carregado de fascínio; tudo a
partir Dele, torna-se objeto de encanto
e louvor... Somente olhos sensíveis são capazes de ver no interior das barbáries
humanas, a beleza desconcertante de uma flor
sem defesa; é preciso, pois, um olfato nativo capaz de se deixar fascinar
pela fragrância de um odor indescritível nascido de um suor salvífico que
dimana do corpo alquebrado de um Deus feito gente.
Foi condenação fraudulenta? Sim; foi tortura
crudelíssima a céu aberto? Sim; foi morte matada? Foi sim... E tudo isso é,
indiscutivelmente, triste, sórdido, imoral e feio! Mas, o efetivamente
desconcertante é que nem a exposição sinistra da mais terrível crueldade humana
conseguiu matar o fascínio e a beleza de um Amor que, mesmo machucado, segue
amando... Tomando, pois, o partido das vitimas não larga os carrascos a própria
sorte, mas até a esses oferece o
interpelante protesto do doce e misericordioso olhar. Não hesitou Deus e
jamais hesitará, e o credo no-lo confirma, em descer ao mais profundo dos
abismos para oferecer a salvação às
vitimas e aos verdugos, aos martirizados e aos tiranos... É dessa forma que o
Cordeiro tira o pecado do mundo; não paga com a mesma moeda, mas, antes,
oferece a outra face; não retribui tapa com tapa nem ofensa com maldade. Por
isso morre como um Deus, dando tudo de si à humanidade; sua vida não é tirada
mais entregue num ato louco e escandaloso de amor. Eis porque toda via-sacra
nos põe diante de uma vida singularmente extraordinária enredada na trivialidade
do cotidiano, nos conecta, pois, a um Deus inconfundivelmente admirável e a uma
face estonteantemente bela capaz de traduzir Deus em humano dialeto.
A esperada “vingança” de Jesus é o perdão
oferecido, que de tão forte, intenso e inteiro chega-nos como uma violência às
avessas; Seu amor desinteressado e escancarado dá nos algozes e em toda humana
criatura uma “porrada salvadora”, não com as mãos ou punhos, mas com o coração
dilacerado. A cruz pela cruz de nada valeria, salvo para satisfazer desejos
sádicos, mas pela vida de Jesus, pela maneira que Ele abraçou-a, aquela
singular cruz tornou-se cruz salvadora, vitoria do amor sem medida, sem
reservas e sem fronteiras.
Nesse horizonte, a via-sacra ou via-crúcis
torna-se, paradoxalmente, em virtude do Cristo, a “via da beleza”. Por isso, estarrecidos e comovidos soluçamos
diante de uma beleza radicalmente estranha que de tão bela dói... E dói porque
nos tira do falso trono que sentamos, porque desqualifica nossas pretensões
insanas e poe por terra nosso desejo voraz de ferir, excluir, ofender e vingar.
Dá-nos, pois, o manso cordeiro com a pureza e inocência do olhar, a “porrada da
beleza“. Sabe como é”; adverte a poetisa Elisa Lucinda, “violenta às vezes de
tão bela a beleza é”.
Conclusão
Às vezes, é preciso mudar o foco, a perspectiva, a maneira de olhar...
Via–sacra não é para
quem tem sede de sangue, mas para quem tem saudade de beleza... Saudade da
estranha e rara beleza do Amor!
Nenhum comentário:
Postar um comentário