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quarta-feira, 19 de março de 2014

Via-Sacra


Planta aguatica da família da vitória-regia. Nasce no pântano e seu caule projeta-se do lodo, mas ela nasce e se mantém limpa. Lembra-nos Jesus que disse: “Não é o que entra que macula o ser humano”. Assim deve ser também cada pessoa e, com mais força, cada cristão: flor de lótus no lamasal da vida.

                                        
A VIA- SACRA SOB A ÓTICA DA BELEZA
Por: Padre Gegê[1]

Como o próprio nome sugere, via-sacra significa caminho sagrado; logo, uma via que não é vulgar ou comum; um itinerário de outra ordem. Tudo que marca uma ocorrência sagrada aparece para o ser humano como fato que rompe a banalidade ou a trivialidade do dia-a-dia. Nesse sentido, as vias-sacras realizadas nas comunidades católicas Brasil a fora no tempo quaresmal relembram, e atestam a luz da piedade popular, que na vida de um certo Galileu, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, fatos de extraordinário valor ocorreram e rememorá-los traz para o hoje da história um potencial transformador. Desse modo, em cada via-sacra, a comunidade religiosa é remetida a um passado vivo, destacando os passos de Jesus de Nazaré e seu trajeto de inigualável beleza humano-divina mesmo em face das terríveis,  escabrosas, e perversas maquinações humanas que o levaram, espantosamente,à morte num madeiro.
Mas o que agora desejo brevemente refletir coloca-nos não no caminho costumeiro de nossas catequeses que desde a quarta-feira de cinzas nos preparam para a vivência quaresmal do sofrimento de Cristo que sem beleza ou encanto, como destaca o profeta Isaías, foi levado à crucifixão pela maldade e pecado humanos. O que procuro destacar, não nega o horror e a barbaria das quatorze estações (desde a condenação até a entronização de seu corpo no sepulcro) e, portanto, a fealdade do potencial destrutivo humano, mas, antes, sublinha no interior da barbárie, o potencial de fulgor e beleza que irradiam do coração do Deus condenado, bem como seus  posicionamentos e  respostas à escabrosa violência humana. Por isso, a via-sacra pode também ser  vista e compreendida no que oferece de beleza admirável que nem a mais brutal violência humana conseguiu extinguir. Noutras palavras, a via-sacra é, também, por mais estranho que nos pareça, a via da beleza que só pode ser compreendida desde dentro por olhos espirituais, por olhos que se demoram ante o maravilhamento do visto sem se dar conta dos desesperados e chatos ponteiros dos relógios; relógios que quase sempre nos apressam e nos empurram para a marcha estressante em direção ao nada.  E o esplendor da beleza que nos paralisa e fascina é Jesus, o conjunto de sua vida e, em especial, o brilho de seu coração que não cessa de luzir e amar mesmo quando a “noite traiçoeira” chega. Nessa hora tenebrosa, o horror do madeiro é confrontado com um tipo inaudito de Amor, um tipo louco de oferecimento de si mesmo, uma maneira surpreendente de ser coerente e ético, de não se vender ou trilhar o caminho mais fácil e lucrativo, como estamos acostumados a ver e a fazer.
Daí segue que atentos aos passos de Jesus, desde a primeira estação, nos colocamos diante de uma existência extraordinária que é oferecida aos nossos olhos míopes em pobres molduras; e, sem desconsiderar o extremo do fechamento humano ao amor divino, tudo, a partir de Jesus vem carregado de fascínio;  tudo a partir Dele,  torna-se objeto de encanto e louvor... Somente olhos sensíveis são capazes de ver no interior das barbáries humanas, a beleza desconcertante de uma flor sem defesa; é preciso, pois, um olfato nativo capaz de se deixar fascinar pela fragrância de um odor indescritível nascido de um suor salvífico que dimana do corpo alquebrado de um Deus feito gente.
Foi condenação fraudulenta? Sim; foi tortura crudelíssima a céu aberto? Sim; foi morte matada? Foi sim... E tudo isso é, indiscutivelmente, triste, sórdido, imoral e feio! Mas, o efetivamente desconcertante é que nem a exposição sinistra da mais terrível crueldade humana conseguiu matar o fascínio e a beleza de um Amor que, mesmo machucado, segue amando... Tomando, pois, o partido das vitimas não larga os carrascos a própria sorte, mas até a esses oferece o  interpelante protesto do doce e misericordioso olhar. Não hesitou Deus e jamais hesitará, e o credo no-lo confirma, em descer ao mais profundo dos abismos para oferecer  a salvação às vitimas e aos verdugos, aos martirizados e aos tiranos... É dessa forma que o Cordeiro tira o pecado do mundo; não paga com a mesma moeda, mas, antes, oferece a outra face; não retribui tapa com tapa nem ofensa com maldade. Por isso morre como um Deus, dando tudo de si à humanidade; sua vida não é tirada mais entregue num ato louco e escandaloso de amor. Eis porque toda via-sacra nos põe diante de uma vida singularmente extraordinária enredada na trivialidade do cotidiano, nos conecta, pois, a um Deus inconfundivelmente admirável e a uma face estonteantemente bela capaz de traduzir Deus em humano dialeto.
A esperada “vingança” de Jesus é o perdão oferecido, que de tão forte, intenso e inteiro chega-nos como uma violência às avessas; Seu amor desinteressado e escancarado dá nos algozes e em toda humana criatura uma “porrada salvadora”, não com as mãos ou punhos, mas com o coração dilacerado. A cruz pela cruz de nada valeria, salvo para satisfazer desejos sádicos, mas pela vida de Jesus, pela maneira que Ele abraçou-a, aquela singular cruz tornou-se cruz salvadora, vitoria do amor sem medida, sem reservas e sem fronteiras.
Nesse horizonte, a via-sacra ou via-crúcis torna-se, paradoxalmente, em virtude do Cristo, a “via da beleza”.  Por isso, estarrecidos e comovidos soluçamos diante de uma beleza radicalmente estranha que de tão bela dói... E dói porque nos tira do falso trono que sentamos, porque desqualifica nossas pretensões insanas e poe por terra nosso desejo voraz de ferir, excluir, ofender e vingar. Dá-nos, pois, o manso cordeiro com a pureza e inocência do olhar, a “porrada da beleza“. Sabe como é”; adverte a poetisa Elisa Lucinda, “violenta às vezes de tão bela a beleza é”. 

Conclusão
Às vezes, é preciso mudar o foco, a perspectiva, a maneira de olhar...

Via–sacra não é para quem tem sede de sangue, mas para quem tem saudade de beleza... Saudade da estranha e rara beleza do Amor!

«É bom que toda a catequese preste uma especial atenção à "via da beleza (via pulchritudinis)", dado que «anunciar Cristo significa mostrar que crer nele e segui-lo não é algo apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de cumular a vida dum novo esplendor e duma alegria profunda, mesmo no meio das provações», (A alegria do Evangelho, Papa Francisco)


[1]              Pároco da Paróquia de Santa Bernadete e Mestre em Teologia sistemático-pastoral pela PUC-RJ.

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