São José, o Pai dos “filhos e filhas feios”
Por: Padre Geraldo José Natalino*
Diz o povo brasileiro em sua sabedoria antiguíssima colhida na vida do dia-a-dia: “filho feio não tem pai”. Essa afirmação é mais sabida que refletida ou pensada com o rigor dos acadêmicos. Contudo, de forma bastante simplória, a primeira vista, ela também pode revelar uma constatação, colhida nas experiências diárias, de que ninguém assume ou faz questão de ter em suas mãos ou perto de si coisas ou pessoas socialmente desprestigiadas. Repetia inumeráveis vezes um amigo: “ninguém diz que é amigo de um mendigo”. E é isso mesmo... “Filho feio não tem pai” assim como “ninguém quer ser amigo de mendigo”.
Mas, na história da salvação algo de controverso aconteceu; José, não sem relutar, tornou-se pai de um “filho feio”, o pobre Jesus de Nazaré que nasceu numa manjedoura, num abrigo de animais, um “filho feio” que ao invés de ser para os pais promessa de um futuro melhor, tornou-se, desde antes do nascimento, causa de desassossegos, perplexidades e tormentos. Desse modo, acolhendo e assumindo Jesus como filho, José supera os vínculos limitados da consangüinidade e oferece ao mundo, no silencio de seu ato, novas possibilidades de exercício da paternidade. Há um provérbio africano que diz: “É preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”. É necessário, nesse horizonte de compreensão, que todos e todas, numa sociedade, sejam educados pela lógica do cuidado, pela experiência fecunda da co-responsabilidade de todos para com todos, sobretudo dos “filhos e filhas feios”, dos descartados e descartáveis, dos vulnerabilizados de toda sorte, dos que estão no submundo entregues ao Deus dará; não vivem, sobrevivem: sem pão, sem paz, sem amor e sem olhar.
Reflete o papa Francisco na ilha de Lampedusa: “A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, nos torna insensíveis ao grito dos outros, nos faz viver em bolhas de sabão, que são belas, mas são nada, são uma ilusão de futilidade, do provisório, que leva à indiferença para com os outros, leva até mesmo à globalização da indiferença”. Neste mundo da globalização caímos na globalização da indiferença. Nós nos habituamos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é tarefa nossa. E ainda questiona o Papa de forma inquietante para os nossos adormecidos ouvidos: Mas eu gostaria que colocássemos uma terceira pergunta: “Quem de nós chorou por este fato e pelos fatos como este?”. Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por tantas pessoas que estavam no barco? Pelas jovens mães que levavam as suas crianças? Por estes homens que desejavam alguma coisa para sustentar as próprias famílias? Estamos em uma sociedade que esqueceu a experiência do chorar, do “padecer com”: a globalização da indiferença nos tirou a capacidade de chorar! São José, no conjunto de sua vida apagada e sombria, sem se valer de discursos, palavras ou definições teológicas, muito comum à insensível intelectualidade cristã dos cabinetes e palácios, nos coloca na rota da globalização da paternidade solidária em favor dos degredados filhos e filhas de Eva que gemem e choram nos vales de lágrimas das periferias do mundo. José personifica, no anonimato de sua existência, o Pai Maior, o cuidador por excelência, o Pai Velho dos filhos e filhas sem pais. Certa fez ouvi uma frase interessante: “Quem quiser ser universal que cuide da sua aldeia”. E isso fez José, cuidou de forma tão intensa e inteira de sua “aldeia”, a sagrada família, que pode oferecer a todos e todas um legado extraordinário na ordem do zelo e do cuidado. Em sua saga silenciosa constelou o arquétipo do guardião, ativando na alma e imaginário coletivos o potencial do proteger, do guardar e do velar, próprios das sagradas entidades de todas as confissões religiosas. Afirma emblematicamente o papa Francisco na Missa de São José no inicio de seu pontificado: “Entretanto a vocação de guardião não diz respeito apenas a nós, cristãos, mas tem uma dimensão antecedente, que é simplesmente humana e diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro de Gênesis e nos mostrou São Francisco de Assis: é ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos. É guardar as pessoas, cuidar carinhosamente de todas elas e cada uma, especialmente das crianças, dos idosos, daqueles que são mais frágeis e que muitas vezes estão na periferia do nosso coração. É cuidar uns dos outros na família: os esposos guardam-se reciprocamente, depois, como pais, cuidam dos filhos, e, com o passar do tempo, os próprios filhos tornam-se guardiões dos pais. É viver com sinceridade as amizades, que são um mútuo guardar-se na intimidade, no respeito e no bem. Fundamentalmente tudo está confiado à guarda do homem, e é uma responsabilidade que nos diz respeito a todos. Sede guardiões dos dons de Deus! E ainda adverte o pontífice: “E quando o homem falha nesta responsabilidade, quando não cuidamos da criação e dos irmãos, então encontra lugar a destruição e o coração fica ressequido”. Por isso, que a partir da figura de São José encontramos e reverenciamos todos os homens e mulheres de boa vontade. São eles e elas inúmeros familiares nossos que abdicam da vida pessoal para cuidar dos filhos e filhas que não geraram na carne, são sem números de voluntários que se esquecem de si mesmos no serviço ao próximo, são os que renunciam um futuro promissor em nome das causas coletivas, são os profissionais que pela extremada dedicação e bondade vão além do exigido e do convencional, são agentes de pastorais e militantes de todo tipo que como velas que se deixam queimar para iluminar a luta por um mundo novo, pela tão sonhada “terra sem males”; são, pois, os Zés, Marias, Severinos e tantos outros que encontramos nas estradas da vida – gente da gente, pais dos sem pais, pessoas do bem, pais dos filhos e filhas feios, menestréis da caridade...
Valendo-me do fantasiar próprio da psique ouso imaginar que José se enamorou de Maria ao fundo musical do Magnificat. Suspeito que o velho José ouvira incontáveis vezes da boca da santa donzela esse canto libertário e de algum modo entrevia que o destino da virgem estava atrelado à sorte dos famintos, dos pobres e humildes de toda terra. Penso ainda que José só dormiu depois de muitas lágrimas, muito pranto e muito choro. Chorava, pois, o velho homem rasgando o seu coração numa oferenda de especial valor: renunciar filhos e filhas carnais para ser o Pai-velho e santo de todo humano sofredor. E recordando o Magnificat pra Maria retornou... E foi dizendo bem baixinho e só o anjo escutou: “Conte comigo Maria, o teu Canto me encantou; se os pobres serão saciados, sempre estarei ao seu lado com os filhos e filhas da terra, nossos grandes aliados e com Jesus, Filho e Senhor!
“Posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo também a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais, souberam conservar um coração crente, generoso e simples”. (A alegria do Evangelho, Papa Francisco)
*O autor é Pároco da Paróquia Santa Bernadete e Mestre em Teologia sistemático-pastoral pela PUC-RJ.
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